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A psicanálise da criança – um estudo de caso
- 30 de janeiro de 2017
- Postado por Tania
- Categoria: Artigos
ISSN 1677-5090 2010 Revista de Ciências Médicas e Biológicas
Resumo Este artigo aborda questões emergentes na psicanálise da criança. A criança apresenta sintomas que, em geral, denotam aspectos inconscientes do casal, da mãe ou do pai. A sexualidade infantil inconsciente dos pais, as resistências e as transferências da criança e dos pais envolvidos no processo, assim como a resistência do analista são fatores a serem analisados e trabalhados. Fragmentos de um caso clínico bem sucedido, de uma criança de cinco anos de idade, que traz como queixa principal a constipação intestinal funcional, assim como questões em torno deste sintoma, são apresentados neste artigo. Jogos, desenhos e a modelagem são instrumentos mediadores que facilitam a expressão da criança nas sessões de análise. Palavras-chave: Sexualidade Infantil – Pais – Inconsciente – Transferência – Constipação Intestinal Funcional.
INTRODUÇÃO
Partindo da experiência clínica, percebem-se as mais variadas manifestações do inconsciente que permeiam a análise de cada criança. Cada criança é única na sua forma de sentir e expressar-se. Os pais desejam que seus filhos cresçam, mas temem seu crescimento e sua independência. Temem que eles sofram, perguntam-se porque estão passando por tantas dificuldades. Aparece, inicialmente, um não querer saber sobre as dores; elas são temidas e evitadas. Novas questões surgem a partir do momento em que se permite olhar para o que a criança em análise mobiliza nos adultos. Assim, no decorrer do tratamento, os enigmas emergem. Dentro da trama inconsciente, as crianças respondem de formas diversas. Às vezes, chegam com a queixa de machucar uma única parte do corpo. Sonham com monstros sem cabeça que tentam matá-las. Ou não conseguem uma socialização esperada e isolam-se dos colegas na escola, brincando apenas sozinhas.
Em alguns casos, prendem as fezes por vários dias, fato que pode refletir suas dificuldades de separar-se delas, demonstrando sua discordância diante de acontecimentos como o nascimento de um irmão. Em outros momentos, ao invés do amor exacerbado, emerge a rivalidade com um dos genitores. Competem pelo lugar da mãe, no caso da menina, e pelo lugar do pai, no caso do menino. Ao demandarem dormir na cama entre os pais, constroem a fantasia de separá-los para gozar dos carinhos e dos cuidados exclusivos de um deles. Por vezes, as crianças desenvolvem um medo que as paralisa. Recusam-se a participar dos aniversários dos amiguinhos, alegando sentir pavor das fantasias dos animadores. Chegam com dúvidas que as atormentam. Questionam o desejo dos pais quanto à sua geração. Diante do sentimento de rejeição, muitas não conseguem dar limites aos colegas, com medo que eles as abandonem. Em alguns momentos, chegam a contestar sobre o sentido da vida, impedindo-se de assumir seus corpos e suas vidas de criança. A masturbação exacerbada, acompanhada por enurese e pela dificuldade de se concentrarem na escola, são sintomas comuns que chegam às consultas. Na maior parte dos casos, os pais afirmam que os filhos são semelhantes a eles quando crianças. Muitas questões surgem: sexo, masturbação, nascimento, separações, crises, medos das fantasias, desejos e rejeições…
Ao aguçar a escuta, o analista pode captar em atenção flutuante, algumas palavras significativas que aparecem inconscientemente na fala dos pais: “Tão cedo”… “cair”… do “sonho”… “sozinhos”… “desesperados”! “Ah! Que horror!”
O que a análise de um filho mobilizaria nos pais? Por que o “anjinho”, o “príncipe” ou a “princesa” da casa, por quem os pais fazem o que podem e por vezes o que não deveriam, faria uma análise? Geralmente, os pais têm uma fantasia de que a análise vai acordar a criança da sua suposta inocência e os monstros adormecidos serão despertados.
Ainda hoje é um escândalo ou causa incômodo falar sobre sexualidade infantil. Assusta dar-se conta de que a criança também sofre, faz sintomas, deseja e revela as suas fantasias quando brinca. Freud (1924) discute sobre o efeito provocado na comunidade científica (médicos e filósofos) ao abordar este tema: Escândalo e Fúria! Freud enfatizava a existência de outras resistências além das puramente intelectuais: as resistências referentes às “poderosas forças emocionais.” Em outras palavras, como doutores em medicina, filosofia e áreas afins poderiam admitir em si mesmos, a existência de impulsos inconscientes infantis de ordem incestuosa, por exemplo?
A humanidade mantém a idéia de uma infância dessexualizada e idealizada: uma infância redonda, sem faltas, sem desconfortos. Esta idéia causa cegueira diante das próprias questões.
Falar sobre psicanálise da criança remete ao tema da sexualidade infantil no seu sentido mais amplo. Isto significa apontar para o desenvolvimento psíquico e as suas fixações libidinais. Frente às frustrações da vida, o psiquismo humano tende a regredir para alguma fase anterior quando obteve alguma satisfação, bloqueando assim, a plasticidade e a flexibilidade para aprender a lidar com as diversidades e as mudanças da vida. Falar de sexualidade infantil significa apontar para a forma de a criança lidar consigo e com o outro, incluindo afetos, pensamentos e fantasias. Significa também enxergar como ela se posiciona frente a suas questões e aos desejos dos pais.
Neste sentido, a criança fala dos seus desejos e das suas defesas através dos seus sintomas. Sintomas como mutismo, constipação intestinal, enurese, asma, erotização precoce, alergias na pele, fobias, agressividade exacerbada, questões com a vida e com a morte são os mais apresentados na clínica.
Os sintomas são satisfações substitutivas de forças pulsionais, sexuais e agressivas, ou seja, o retorno do recalcado propriamente dito. Lacan (1951) afirmava que a doença fala a verdade do sujeito. Os sintomas, então, anunciam que algo não vai bem não apenas com a criança, mas também com o casal parental ou com um dos pais. A criança é o objeto do desejo inconsciente dos pais. Lacan (1969) diz que o sintoma da criança achase em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar representando, em alguns casos, a verdade inconsciente do casal parental. Em outros casos, o sintoma da criança pode revelar a subjetividade da mãe; a criança fica, então, aprisionada nas capturas fantasmáticas deste Outro materno, tornando-se, dessa maneira, seu objeto. * Neste último caso, o analista, ao fazer intervenções, lida com grandes desafios, pois no primeiro tempo do complexo edípico, a criança, que se encontra no lugar de falo da mãe, ainda não é sujeito, assim, o seu desejo é o desejo do desejo da mãe (LACAN, 1957, 1958). Por outro lado, quando o sintoma da criança corresponde à verdade inconsciente do casal parental, apesar de mais complexo, vem a ser menos refratário às intervenções do analista.
Os jogos, os desenhos, a modelagem são outras formas de a criança falar sobre o que está acontecendo com ela. Cabe ao analista escutar o que a criança fala durante o brincar, e ler o que se encontra latente numa realidade que vai além do comportamento manifesto observável – a relidade psíquica inconsciente.
O lúdico, na sessão de análise da criança, ocupa uma função referencial no processo psíquico. Em outras palavras, é uma via de acesso privilegiada do trabalho de simbolização e de apropriação da experiência subjetiva. Podem-se observar, em algumas sessões, jogos que se reduzem à mera repetição e fecham espaço para novas formas de relações. O latente é, portanto, o que caracteriza o espaço da psicoterapia; o que está em jogo na esfera do inconsciente é mise en jeu, é transferido (ROUSSILLON, 2003). O jogo, resumido a ele próprio, deixa de fora a transferência. Sabe-se que o analista apenas consegue interpretar na transferência. E só nesse espaço transferencial pode interferir e ajudar a criança a traduzir suas dificuldades e potencialidades. O brincar auxilia no processo de simbolização da criança como um instrumento intermediador que doa a sua realidade à fantasia, possibilitando-lhe falar da sua realidade psíquica. Neste espaço, torna-se possível perceber a fase na qual a criança encontra-se fixada e o respectivo objeto que a pulsão contorna.
* O termo objeto possui definições particulares dentro da conceituação psicanalítica. Freud traz a idéia do objeto como perdido, o qual segundo ele, paradoxalmente, nunca existiu; coloca-o em jogo, no movimento de repetição da pulsão que o contorna. Entende-se pulsão como uma carga energética que tem sua fonte no corpo e é atravessada pela linguagem. Existe a fonte, o objeto e a meta da pulsão. Por exemplo, a zona anal é uma fonte pulsional cujo objeto é o cíbalo e o objetivo é descarregar, parcialmente – visto que a pulsão é parcial – o estado de tensão que impera na zona pulsional. Lacan acrescentou à idéia de Freud a questão do traço que se inscreve na repetição. Existe uma complexidade na idéia de objeto ao longo da obra de Lacan. O termo objeto é representado pelo mamilo, pelo cíbalo (fezes), pelo olhar e pela voz que são, por sua vez, significantes do falo. (KAUFMANN, 1996). A criança como objeto, inicialmente, representa para a mãe o falo imaginário que, na fantasia dela, tamponará a sua falta.
Dolto (2010) discorreu a sua tese a partir dos casos de crianças que atendia, constatando terem sido elas que criaram tudo, e que a autora foi apenas uma observadora; ela rabiscava com maestria as modelagens realizadas pela criança, e isto a permitia pensar, associando as modelagens com os depoimentos. O desenho e a modelagem são instrumentos cruciais para possibilitar à criança outra via de expressão quando elas não sabem o que dizer. A linguagem gráfica encoraja as crianças a exprimirem uma fantasia representada pelo desenho. A modelagem é, dessa maneira, vista como um terceiro plano que facilita certas crianças a exteriorizarem melhor suas fantasias, pois ela permite a mudança constante de formas, possibilitando a evolução da fantasia junto com a criação plástica. Além disso, a modelagem pode expressar a imagem inconsciente do corpo da criança ou do outro, ou ainda, de partes do corpo e, sem que a criança o saiba, é um instrumento valioso para a escuta e para a dinâmica da análise das crianças, pois as formas representadas por elas podem referir-se às fantasias de uma determinada época. Mediante o uso da modelagem e do grafismo, a criança pode fabricar e projetar não apenas as suas fantasias a partir de matérias-primas, mas também expressar a sua transferência com o profissional que a trata. Observando os desenhos das crianças, que elas levavam para juntas analisarem, Dolto (2010) percebia e marcava como a progressão dos desenhos feitos pela criança dizia tudo sobre a organização da sua transferência com a analista.
A experiência de Dolto (2010), em 1936, no hospital Enfants-Malades, onde realizava consultas ambulatoriais com a família e as crianças, é inestimável. O residente encaminhava a criança para terapia porque Dolto iria se interessar em saber o que significava o sintoma, o qual chamava de pantomimas ou brincadeira do sintoma, levado a sério pelos médicos como sinal de doença orgânica, quando, na realidade, representava a forma como as crianças disfarçavam sua angústia. Ela apenas assumia o tratamento da criança e da família se o residente em medicina, ou o chefe, dissesse que estava tudo bem no plano físico, ou seja, quando não se constatava uma etiologia orgânica para o referido sintoma.
Ao mesmo tempo, muitas são as patologias que podem se beneficiar de uma conduta combinada, associando a terapêutica médica à psicanálise, e uma delas é representada pela constipação intestinal crônica refratária ao tratamento convencional. Na maioria das vezes, as crianças portadoras deste sintoma foram submetidas a diversas intervenções medicamentosas, manipulações terapêuticas e dietéticas, e, por vezes, até a condutas extremas como hospitalização. Nestas situações crônicas e refratárias, muitas vezes os pacientes respondem melhor quando o tratamento médico é associado à análise. Em algumas crianças portadoras de constipação, ocorre o treinamento precoce de evacuação e o medo de sentarem-se no vaso, por associarem a evacuação a uma experiência dolorosa (SILVA, 2009).
Várias situações que acometem o trato digestivo, que são denominadas de doenças funcionais, não apresentam substrato orgânico, e cada vez mais estão associadas a distúrbios de comportamento, ao eixo neurológico aliado a alterações de motilidade no trato digestório, e até mesmo mais recentemente, à presença da síndrome do intestino irritável, por exemplo. Outros distúrbios têm sido descritos como vinculados, em algumas situações, ao abuso psicológico ou físico. Para que seja identificada a constipação intestinal e afastada a possibilidade da síndrome do intestino irritável, em crianças com idade mínima de quatro anos, por exemplo, critérios diagnósticos foram estabelecidos pelo Roma III. Tais critérios devem ser atendidos pelo menos uma vez por semana, ao menos durante dois meses antes do diagnóstico. A criança deve apresentar entre duas ou menos defecações por semana ou, pelo menos, um episódio de incontinência fecal por semana; um histórico de postura retentiva ou retenção voluntária excessiva das fezes; uma história de movimentos dolorosos do intestino; presença de grande massa fecal no reto; um histórico de fezes de diâmetro largo, que podem obstruir o vaso sanitário. A retenção das fezes está relacionada com a dor causada pela evacuação (RASQUIN et al., 2006).
Pesquisar a singularidade de cada caso pode contribuir para um melhor entendimento dos pediatras sobre esta situação comum representada pela constipação. Lacan (1962-63) reiterou que o cíbalo seria, na criança, a dádiva por excelência, o produto criado pela criança. A metáfora do dom foi extraída da esfera anal, e é essencial na relação com o Outro materno. Antes, na fase oral, o bebê se relaciona com o mamilo como se ele fosse a mãe, ao mesmo tempo em que não se distingue dela. Diferentemente, na fase anal, a criança tem a oportunidade de se reconhecer nas fezes, percebendo-se separada da mãe, ainda que esteja embaraçada na sua demanda da mesma. Lacan lembrou ainda da etologia animal, quando escreveu que, no âmbito dos mamíferos, as fezes exercem a função de marca territorial, a qual estaria profundamente ligada ao lugar que o sujeito orgânico garante para si, o lugar de posse no mundo. O dom é colocado pelo autor como ato social, sendo que a marca fecal, que tem por função representar o sujeito na sua constituição subjetiva, caracterizada de desejo anal, carrega em si um pano de fundo biológico.
Freud (1908) observou, na sua experiência clínica, um determinado tipo de indivíduo, que se diferenciava dos outros; descreveu traços de caráter específicos, e juntamente com estes traços, propôs uma conexão orgânica. As três características colocadas por Freud – ordem, parcimônia e obstinação – englobam um grupo de traços de caráter. O autor ainda associou a dificuldade de essas pessoas, na infância, transporem a incontinência fecal, ratificando que, quando bebês, parecem ter pertencido ao grupo que se nega a esvaziar os intestinos ao ser colocado no vaso, pelo fato de obter prazer suplementar do ato de defecar. Atenta também para a ideia de que tais indivíduos nasceram com uma constituição sexual de caráter anal excepcionalmente forte.
A prevalência de problemas comportamentais em crianças com constipação funcional e características clínicas associadas tem sido pouco investigada, apesar de os problemas comportamentais serem comuns nesses pacientes. A prevalência de constipação intestinal na infância é variável, sendo descrita entre 0,7% a 29,6%, variação maior do que a descrita no Brasil (24,4 % a 36,5) (VAN DEN BERG; BENNINGA; DI LORENZO, 2007). O comportamento dos pais exerce forte influência sobre o estado físico e mental dos seus filhos. A mãe é aquela que possui o papel mais importante na tenra infância, dando suporte para uma regulação do humor da criança. Uma hipótese é a de que o estilo dos cuidados maternos influenciaria no controle da evacuação em uma criança. A população deste estudo foi recrutada da Universidade de Trabriz, entre 2007 e 2008, utilizando-se o critério Roma III para o diagnóstico de constipação intestinal funcional. O caráter das mães, descrito pelos autores como impetuoso, zeloso, autoconsciente e metódico, pode provocar uma resposta de resistência e retenção por parte da criança, que pode apresentar-se como confusa, descuidada ou destrutiva frente à abordagem inflexível de uma mãe com tendências a uma personalidade rígida e obsessiva (FARNAM et al., 2009). A demanda anal é da mãe e, diante disso, a criança recusa-se obstinadamente a evacuar, ou melhor, quando isso é desejado pela pessoa que cuida dele. (FREUD, 1905)
RECORTE DE UM CASO CLÍNICO
Denominado de Fabrício, um menino de cinco anos de idade, imperativo, genioso e sedutor. Filho único e de pais jovens, mora com a mãe e os avós maternos. Chega ao consultório, apresentando constipação intestinal funcional diagnosticada pelo médico. Não consegue evacuar durante 4 a 5 dias, resultando em fortes dores abdominais, suja a roupa involuntariamente, devido à retenção das fezes, além de, por diversas vezes, a mãe precisar extrair as fezes manualmente. Fabrício já havia sido submetido à várias hospitalizações por conta deste sintoma. Associado ao sintoma da constipação, Fabrício apresenta traços obsessivos que remontam à fixação da pulsão anal: toca nos objetos com a ponta dos dedos, detesta sujar-se, demonstra baixa tolerância às frustrações, fazendo birra ou explodindo com seus familiares e amigos, o que remete à dificuldade em lidar com sua agressividade. Ansioso e irritadiço, encontra-se demasiadamente identificado à mãe: baixa autoestima, exigências e confusões psicoafetivas refletem como um espelho as questões da mãe. Ela possui traços anais marcados pelo alto nível de exigência e rigidez consigo e com a educação do filho, além de ser ordeira e parcimoniosa. Tem dificuldades em colocar limites para o filho, pois não consegue ocupar uma posição de autoridade em relação a ele, ao mesmo tempo em que não permite o pai exercê-la. Ele, por sua vez, abstem-se de qualquer implicação no exercício da função paterna e permite que a separação do casal interfira no vínculo com seu filho. Os pais divorciaram-se aproximadamente dois anos após o nascimento de Fabrício.
Extremamente colado à mãe, Fabrício expressa, no sintoma da constipação, a dialética entre permanecer submetido psiquicamente ao Outro materno ou separarse dele. O pai é ausente e distante do filho desde então, recusando-se, na maioria das vezes, a comparecer nas entrevistas, quando convidado pela analista.
Fragmento de uma sessão após dois meses de atendimento
Fabrício entra na sala com andar e expressões contidos. A mãe, que esperava na antessala, não se contém e fala: “Ele não evacua há dois dias, não sei mais o que fazer…”
A analista propõe a Fabrício brincar com argila. Inicialmente, ele resiste e só quer brincar com uma aranha de plástico que abre e fecha – trazida por ele – a qual chama de “ranha”. Fabrício fala que a “ranha” macho é ele, e a outra, a fêmea, é a analista. Neste momento, a criança está transferindo para a analista, a sua relação com o Outro materno. A analista faz um acordo com o paciente: brincam uma parte da sessão com a “ranha”, e a outra parte com a argila. Com certo pesar, ele aceita.
Fabrício joga a “ranha” para a analista expressando um som “êêêê”, com júbilo, quando o envoltório, que contem a “ranha” se abre. Pede para a analista jogar a “ranha” para ele e, quando a “ranha” não abre, ele diz “óóó”. Após algumas repetições do movimento, a analista capta o cair e abrir da “ranha” e interpreta, dentro do circuito da transferência: “êêêê… caiu… abriu… o cocô caiu!” A analista pega a argila e começa a amassá-la. Fabrício recusa-se, a princípio, a se sujar, pegando a argila na ponta dos dedos. A analista propõe fazer uma bola (‘um bolo fecal’) com a argila e começam a cantar: “bola, bolinha, bolona…” Fabrício vai relaxando, até pegar a argila com toda a mão. A analista pergunta: ‘Por que você não quer que o cocô caia? Por que não quer dar o cocô para mamãe? Não quer separar-se dele?’ Com muita raiva, Fabrício responde: “Não vou separar da minha mãe. A minha vida é dela e a vida dela é minha”. Analista: ‘Como? Então você ainda está na barriga da mamãe como o cocô está na sua barriga? Por que não pode separar-se da mamãe?’ Fabrício: “Não quero. Não quero.” Analista: ‘Deve doer muito não poder sair da barriga da mamãe e não deixar o cocô sair ”. Continuando a manusear a argila, transforma a bola em uma cobra e, de repente, a argila se parte. Fabrício fala: “Deu choque! Separou!”.
No final da sessão, Fabrício pede para ir ao banheiro e evacua. Este momento do tratamento remete ao conhecido jogo do ‘fort-da’, criado pelo neto de Freud e observado por ele durante algumas semanas. ‘Fort’ significa ‘ir embora’ em alemão e ‘da’, significa ‘ali’. O menino tinha um ano e meio de idade e era bastante ligado à mãe, brincava repetidamente com o seu carretel – amarrado a um cordão. Toda vez que jogava o carretel para longe, emitia um som ‘óóóó’; ao contrário, quando puxava o carretel para perto de si, expressava um ‘êêê’ de júbilo. O significado dessa brincadeira de desaparecimento e retorno, analisada por Freud, é que a criança, através da repetição desse jogo, elaborou a presença e ausência da mãe e ocupou uma posição de sujeito ativo, pois era ela quem controlava o aparecimento e o desaparecimento do objeto. Antes, quando a mãe tinha que deixá-lo por algumas horas, a criança ficava na posição de passividade (FREUD, 1920)
A remissão completa do sintoma ocorreu em seis meses de tratamento. O atendimento estendeu-se por mais cinco anos, visto que a análise da criança, através da escuta, interpretação e ressignificação dos conteúdos latentes, ajudou a simbolizar. No caso de Fabrício, elaborar a dinâmica de alienação ou separação entre mãe e filho foi fundamental para ele construir as suas próprias questões na análise. Já não estava mais sendo trazido pela mãe, mas pelo seu próprio desejo de crescer. Fabrício permite-se falar dos seus sentimentos e pensamentos em relação à ausência paterna e dos incômodos no relacionamento com a mãe. Ela se dá conta do seu desejo inconsciente de manter o filho só para ela, sem dividi-lo com outras mulheres, quando traz a fantasia e o medo de o filho ser homossexual no futuro. No processo de análise, Fabrício começa a socializar melhor, fazendo mais amigos na escola e esboçando questões sobre sua sexualidade e agressividade: diz que quer seguir a mesma profissão do avô quando crescer, passa a gostar de se sujar, fala das estratégias para aproximar-se das meninas e das brincadeiras de luta com os meninos.
As crianças transferem para o analista as formas de relações construídas com seus pais e outros familiares – as dificuldades e possibilidades. Elas resistem à análise evitando pensar nas suas questões; algumas vezes sentem culpa porque os pais pagam a análise e poderiam estar gastando o dinheiro em ‘outras coisas’; sentem medo da mudança e têm a fantasia de que desta maneira, perderão o amor dos pais. Estes, por sua vez, defendem-se alegando a falta de tempo e dinheiro; não se implicando no processo da análise da criança. Intelectualizam a análise do filho ou fogem da possibilidade de uma análise para si mesmos. Aprisionados na culpa, os pais tornam-se impotentes frente aos filhos, tentando preencher-lhes os buracos, as faltas. Aceitam, assim, a onipotência da criança que, na fantasia dos pais, não pode ter fraquezas. Os pais defendem-se, por fim, acirrando-se à sua própria onipotência infantil. E os analistas defendem-se tendo dificuldades de escutar as suas resistências, quando tomam para a sua pessoa a raiva que os clientes levam para a análise; não escutam os significantes que emergem, impedindo-se de pensar; defendem-se repetindo os pais na relação com a criança, por exemplo, rejeitando-a ou se encantando com ela; resistem quando não escutam os significantes que estão marcando a vida desta criança. O analista também resiste à sua análise pessoal e há que refletir sobre isto também em todo o processo da análise das crianças. Finalmente, os adultos reagem à análise da criança porque ela os remonta ao infantil recalcado. A psicanálise da criança remete os adultos às suas dores e medos. Impede-se a análise da criança porque existe esse horror ao que está esquecido e inconsciente. Enfrentar as feras esquecidas da erotização e da agressividade desgovernadas e destrutivas que agem silenciosamente a serviço da pulsão de morte, não é tarefa fácil. Não se quer saber do que causa incômodo e opõe-se primitivamente diante da possibilidade do novo e da oportunidade de mudar. Para isto, é preciso dar-se conta das questões edípicas, das marcas que denunciam as fixações sadomasoquistas. É preciso deparar-se com a angústia e com o horror à castração e aprender a lidar com o canibalzinho estagnado no gozo de devorar as tetas maternas, impossibilitando o sujeito do inconsciente de emergir, negando à criança a possibilidade de descolar-se do Corpo da Mãe em direção à realidade. Uma vez levando o filho para análise a própria história é mobilizada. Abre-se, então, a possibilidade de desatar alguns nós entre a criança interna e a criança que foi gerada. Cuidar da criança interna para exercer melhor as funções do adulto, ajudando o filho a perceber também a sua responsabilidade na construção dos seus sintomas, na maneira como lida com a sua libido e com o desafio de crescer.
Fazer análise para canalizar a energia sexual e agressiva da criança, na busca de caminhos para ela pensar que lugar subjetivo ocupa na família, na fantasia da mãe, na fantasia do pai e na dela própria. Encontrar o que possui de singular, independente das suas identificações com os pais. Quem ela quer ser quando crescer? Ajudar a criança a fazer laços sociais, canalizar a sua agressividade e tornar-se sujeito da sua própria história é tarefa dos pais e do analista da criança, mostrando-lhes que a vida não é apenas gozo, mas que existem leis.
O processo de análise mobiliza a todos os envolvidos e muitas vezes pergunta-se: ‘Vale a pena “acordar” os monstros?’ A análise não acorda monstros; ela lida com aqueles que já estão acordados, perturbando o sono, adoecendo o corpo, boicotando a realização dos desejos mais profundos e construtivos em direção à vida.
Por: Claudia dos Reis Motta¹, Luciana Rodrigues Silva², Hélio de Castro³ 1Bacharel em Psicologia pela UFBA, Psicanalista pela Sede Psicanálise e Mestranda no Programa de Pós Graduação em Processos Interativos dos Órgãos e Sistemas pelo Instituto de Ciências da Saúde – I.C.S; 2Professora Titular de Pediatria, Chefe do Serviço de Gastroenterologia e Hepatologia Pediátricas, Professora Permanente do Programa de Pós-gradução em Medicina e Saúde e do Programa de Pós-gradução em Processos Interativos dos Orgãos e Sistemas da Universidade Federal da Bahia. Endereço: Serviço de Gastroenterologia e Hepatologia Pediátricas Complexo Hospitalar HUPES-CPPHO, Universidade Federal da Bahia; 3Psiquiatra, Psicanalista e Supervisor Clínico. Fundador, Diretor da SEDE Psicanálise desde 1986 até o presente momento
Recebido em 29 de janeiro de 2010; revisado em 31 de maio de 2010. Correspondência / Correspondence: Universidade Federal da Bahia. Av. Reitor Miguel Calmon, s/n, Vale do Canela. 40.110-100 Salvador Bahia Brasil.
Fonte: ISSN 1677-5090 2010 Revista de Ciências Médicas e Biológicas